quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

MAIS JUDEUS X ALEMÃES

(No qazo, Judeus x judeus).

“Quem Escreverá Nossa História? – Os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, do historiador Samuel D. Kassow.
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O gueto contava com uma parcela expressiva de jornalistas, intelectuais, professores e outras lideranças. Predominavam os partidos de esquerda, mas também havia muitos rabinos e sionistas conservadores. Proveniente de uma cultura laica de esquerda, eminentemente crítica, responsável por tomar o estudo da história hebraica e da literatura iídiche pedra basilar de uma nova identidade judaica, Ringelblum foi percebendo cada vez mais claramente que a identidade do sobrevivente iria se sobrepor ao passado anterior à guerra. O “antes” seria totalmente apagado pelo “depois”. Por isso, a organização do arquivo representou a única estratégia possível para impedir que o rótulo posterior de “vítimas” viesse a anular a identidade dos judeus antes da guerra.
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Foi Ringelblum, mais do que qualquer outro e logo depois de ser confinado, quem incentivou as pessoas a escrever, concebeu e organizou o arquivo como um empreendimento coletivo e, com alguns colaboradores mais jovens, cuidou da perigosa missão de enterrar as caixas. Reunir material, registrar tudo imediatamente, escrever aquilo que não seria deturpado pelas lentes distorcidas da memória seletiva ou das lembranças retrospectivas das pessoas foram as únicas palavras de ordem do organizador do arquivo. Por tudo isso, não há nenhum resquício sequer daquele tom fantasioso possibilitado pelo distanciamento da lembrança, nem outro modo de reagir à leitura dos -testemunhos. É tudo muito penoso, brutal, perturbador e chocante.
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As ruas fervilhantes, superlotadas, com seus contrastes dissonantes, a cacofonia sonora e as cenas macabras de imundície, violência e morte em público. Outros escritos não escondem sequer as chamadas “patologias do gueto”: a polícia judaica, os informantes, a indiferença dos funcionários municipais (todos judeus) em relação aos mendigos e crianças.

Antes da guerra, praticamente não havia judeu carteiro, policial ou funcionário. Depois de 1940, eles estavam por toda parte, imersos na corrupção, na venalidade e na prepotência, transformando-se em símbolos irônicos da “autonomia” que os alemães haviam concedido ao gueto. É o que revela um escrito anônimo, de 12 páginas, com o título Botas. Muitos judeus gostavam de usá-las porque transmitiam uma sensação de poder e autoridade, sempre associadas ao hábito de gritar ordens e comandos. Apenas um forte exemplo de como os valores nazistas também tinham se infiltrado em algumas categorias da população judaica.
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Mas foi o drama das crianças que trouxe à tona o melhor e o pior da sociedade do gueto. Reunindo 34 redações de alunos do Centro Escolar, com o tema “O que significa a guerra?”, o arquivo oferece uma preciosa documentação da agonia da infância e do desafio moral que ela representou ao gueto. “O que significa a guerra? Falta de trabalho e fome. Planos para depois da guerra? Nenhum. Acho que, enquanto eu viver, nada vai mudar”, escreveu Chilt Brajtman, de 14 anos. “Sei o que é a guerra, mas não consigo pôr em palavras”, escreveu Sarah Sborow, de 13 anos. “O mundo está virando de ponta-cabeça. O planetinha se dissolve em lágrimas. E eu – eu estou com fome, fome. Muita fome”, escreveu Janina Wolski, de 14 anos. Cenas do Hospital Infantil, escrito entre março e maio de 1941, pela enfermeira Dora Wajnerman, é um testemunho tão cruento que poderia servir quase como fria anamnese dos efeitos da fome no organismo humano: da difusão dos edemas e súbita baixa da temperatura corporal à fase de autoexclusão de qualquer relação com o ambiente, quando tais criaturas habitam um território que já não é mais o da vida, mas também não é ainda o da morte. Será possível, então, compreender o gesto da doutora Adina Szwajger, que, diante da ordem alemã de liquidação definitiva do hospital infantil, deu veneno para 26 crianças para lhes poupar os horrores de Treblinka?

Seja como for, no meio de tanta tristeza, aparece o pitoresco manuscrito de um obscuro Tytelman, que registrou uma compilação de cantigas de rua, declamações de poetas, anedotas e cantilenas de mendigos. Crivadas de trocadilhos e palavras de duplo sentido, serviam para divertir o povo nas ruas e engendrar parcos momentos de convívio civilizado. Uma delas testemunha um vendedor de braçadeiras com a estrela de Davi, que insistia no refrão: “Novas, novíssimas, nunca usadas, em várias cores!” Outra descreve um punhado de judeus conversando: “O que eu mais gostaria – dizia um – é que Hitler virasse um lustre com velas.” “Por quê?”, perguntaram. “Porque só desse modo eu o veria pendurado por um fio durante o dia, queimando à noite e sendo extinto de manhã.” Fraco ou constrangido, o riso se esgarçava. E mais parecia um raio bruxuleante, rápido e fugaz, a lembrar um fiapo de dignidade humana em meio ao registro do luto, da impotência e da morte, num arquivo que teve mais sorte em preservar documentos do que salvar pessoas.”

(Carta Capital, Elias Thomé Saliba)

(Eu não dise?, santifiqaram os judeus e demonizaram os alemães).