Deus me perdoe, mas estou capaz de jurar que a chuva é um acinte. O céu anda impertinente. Não se chove assim dois meses seguidos por simples desabafo de um fenômeno físico; e deve haver sem dúvida no fundo dessa chuva uma razão moral. Confio pouco nos recursos da meteorologia para explicar esse abuso d’água que me parece escapar ao seu domínio e pertencer ao e pertencer ao domínio pleno da teologia, como o Dilúvio, o arrasamento de Gomorra e tantas outras manifestações históricas da zanga divina. Nos últimos tempos, depois que Deus ficou velho, os seus castigos diminuíram muito de intensidade, sinal de que a sua cólera perdeu a violência dos sentimentos juvenis. E os profetas, não tendo mais profecias, acabaram sendo substituídos prosaicamente por barômetros.
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Neste momento um raio de sol atravessa inesperadamente os vidros da minha janela. Rumorejam-me na alma estrofes lascivas do Cântico dos cânticos. Ó virtude, flor sem perfume a que a sombra dos mosteiros é propícia, e que não passas de bolor do coração! Os frades que te cultivem. Eu, por mim, abro a vidraça, para que o vicio entre, livre e triunfante, sob a forma de um raio de sol dourado.“
(Vicente de Carvalho)