quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

TORÓ

“Chegarão chuvas suaves

(Ray Bradbury)

Na sala de visitas, o relógio-falante cantou: Tique-taque, sete horas, hora de levantar, hora de levantar, sete horas!, como se tivesse medo que ninguém quisesse. A casa matinal estava deserta. O relógio tiquetaqueou, repetindo seu som no vazio. Sete e nove, hora do café, sete e nove!

Na cozinha, o fogão exalou um suspiro sibilante e lançou do seu aquecido interior oito fatias de pão, perfeitamente torradas, oito ovos fritos ao ponto, dezesseis tiras de toucinho, duas xícaras de café e dois copos de leite gelado.

— Hoje são 4 de agosto de 2026 — disse uma segunda voz, do teto da cozinha — na cidade de Allendale, Califórnia.

— Repetiu a data três vezes para fixá-la na memória.

— Hoje é o aniversário do Senhor Featherstone. Hoje é o aniversário de casamento de Tilita. É o dia de pagar as contas de seguro, água, gás e luz.

Em algum lugar das paredes, relés estalaram e fitas de memória deslizaram sob olhos elétricos.

Oito e um, tique-taque, oito e um, hora do colégio, hora de trabalhar, depressa, depressa, oito e um!, mas as portas não bateram, os tapetes não receberam as leves marcas de saltos de borracha. Chovia lá fora. A caixa do tempo, pregada na porta da rua, cantava tranquilamente: “Chuva, chuva, vá em bora. Hoje é dia de capas e de galochas...

“E a chuva caía sobre a casa vazia, ecoando.

Fora, a garagem soou ergueu sua porta para mostrar o carro à espera. Depois de passado um tempo, a porta abaixou.

Às oito e meia, os ovos estavam murchos e as torradas feito pedra. Um utensílio de alumínio jogou-os na pia, onde um jato de água quente turbilhonante lançou-os numa garganta de metal, que os digeriu e atirou num mar distante. A louça suja foi colocada numa lavadora quente e emergiu seca c reluzente.

Nove e quinze — cantou o relógio — hora da limpeza.

Pequenos camundongos-robôs saíram de orifícios nas paredes. As habitações formigaram com os pequenos animais de limpeza, todos de borracha e metal. Esbarraram em Cadeiras, fazendo girar seus detectores, alisando os tapetes, sugando suavemente o pó escondido. Depois, como invasores misteriosos, pularam para suas tocas. Seus rosados olhos elétricos apagaram-se. A casa estava limpa.

...

Chegarão chuvas suaves e o perfume do solo,
As andorinhas adejando, com seu canto estridente.

E sapos nos charcos cantando de noite,
E ameixeiras silvestres, trêmulas e. pálidas.

Tordos vestirão sua plumagem de fogo,
Assoviando suas fantasias numa cerca baixa.

E ninguém saberá que há guerra, ninguém
Se preocupará quando ela tiver fim.

Ninguém se importará, seja pássaro ou árvore,
Se a humanidade perecer totalmente.

E a própria Primavera, quando despertar ao amanhecer,
Nem suspeitará do nosso desaparecimento.
...”