terça-feira, 29 de abril de 2014

EXCISÃO EXCITADA

Existem realidades tão distantes das nossas quanto a última galáxia do Universo, e algumas apenas são menos hediondas que o aborto, e tem que ser combatidas para serem eliminadas da civilização humana.

“Excisão

Quando a tradição é um crime

A viverem na Grande Lisboa, as guineenses Aissatu, Cadidja, Filó e Yasmin contam como a luta contra a mutilação genital feminina está longe do fim. Uma questão de direitos humanos. De igualdade. E de saúde

Teresa Campos

8:00 Quinta feira, 13 de Fevereiro de 2014

“'Eu me ergo!

Pela menina que fui um dia, Pela infância interrompida (.) por um amanhã em que o Fanado deixe de ser o nosso fado'

Poema de Rita Ié, lido na cerimónia do Dia da Mulher Guineense, na Casa da Achada, Mouraria, a 30 de janeiro

A voz a estas mulheres. Oiça-se Aissatu Camará, a lembrar-se do dia em que a tia pedira, e a mãe deixara, que a levassem para a barraca, na mata, onde enfiam as meninas que vão ao sacrifício, ao fanado. "Só me disse para não fugir e que, se tentasse, podia morrer." Tinha uns seis ou sete anos. Ficou naquela mata durante três meses, a dormir no chão e à chuva. Era tempo de férias, no verão tropical sempre cheio de intempéries. Quando chegou a sua hora, obrigaram-na a ir para a barraca. Aissatu conta que chorava com todas as suas forças. "Fiquei sem voz." Não lhe valeu de muito. Pouco tempo depois, a mãe imigrava, deixando-a ao cuidado dessa tia, em Bissau, até ao início da adolescência.

Com as mãos trémulas, e a garganta embargada, não esconde que a invade uma série de sentimentos contraditórios. "A minha tia só me mandou para aquilo por causa da festa." Ainda tentou desculpar a mãe. Mas, na verdade, nem o tempo que passou Aissatu tem hoje 27 anos, a mãe 47, a tia 54 apaziguou a mágoa entre as mulheres da família.

"Continuam a defender que é bom, para se ficar pura", desespera a jovem, que só há pouco tempo confessou o seu drama às melhores amigas. "Porque se não se fala, nunca mais acaba." É uma realidade profundamente enraizada no mundo africano, que ultrapassou fronteiras, galgou continentes e hoje se cruza conosco, na rua apesar de, desde 1979, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Tortura contra as Mulheres ter sido ratificada por 185 países. No globo, o drama atinge proporções gigantescas: em 2010, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimava que já tivesse vitimado mais de 100 milhões de meninas, em 28 países (entre estes, a Guiné-Bissau). Mas, segundo a mesma OMS, Portugal e o resto da Europa são atualmente países de risco, com a prática a reinstalar-se devagarinho, devido aos fluxos migratórios.

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http://visao.sapo.pt/quando-a-tradicao-e-um-crime=f768518